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A função antissocial dos bancos e o adoecimento generalizado da categoria

Por André Guerra *

Começo essa reflexão com uma pergunta. Qual é a função de um banco?

Um hospital tem função. Uma oficina mecânica tem função. Uma escola tem função. Uma academia de musculação tem função. Um estádio de futebol tem função. E um banco? Qual a função de um banco?

Em minhas palestras, quando faço essa pergunta aos bancários e bancárias da plateia, nunca ouvi uma resposta de primeira. Todo mundo titubeia para responder.

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º, inciso XXII, garante o direito de propriedade privada. Mas não por acaso, no inciso imediatamente seguinte, o XXIII, a Constituição impõe que toda propriedade deve atender à função social. Não existem direitos sem deveres. Não existem deveres sem direitos. Não pode haver direito à propriedade privada, ao lucro, sem o cumprimento da função social.

Ocorre que o gaguejar dos bancários quando confrontados com a pergunta sobre a função dos bancos revela uma obviedade: os bancos não desempenham uma função social. Mais do que isso. O sistema financeiro brasileiro tem uma função antissocial. Isso significa que a existência dos bancos, especialmente os privados, não tem outra função a não ser garantir dividendos para seus acionistas. Os lucros obtidos pelo sistema financeiro brasileiro se dão às custas da espoliação e do endividamento generalizado das camadas mais pobres da sociedade. Prova disso é o consenso da categoria bancária de que os piores “produtos” financeiros são destinados quase que exclusivamente às camadas médias e menos favorecidas da população.

Títulos de capitalização, Certificados de Depósito Bancário, seguros de vida, consórcios, etc., grande parte desses “produtos” vendidos – ou empurrados através de vendas casadas – não seriam adquiridos nem pelos bancários que fazem as vendas. Quantos bancários acreditam no valor dos produtos que vendem? Quantos bancários chegam ao final do dia com o sentimento de que melhoraram a vida de uma pessoa, família ou empresa? Quantos bancários teriam coragem de revelar as estratégias que utilizam para bater as metas da semana?

O psiquiatra austríaco Viktor Frankl afirmava que o elemento mais essencial da saúde psíquica é a existência de um sentido para a própria vida. Para ele, uma vida com sentido é aquela capaz de realizar-se através de tarefas repletas de valor e finalidade. Quando sentimos que nossa vida faz uma diferença positiva na vida de outros, sentimos que nossa vida vale a pena ser vivida. Por outro lado, quando nossa existência é indiferente ou até mesmo negativa para os outros, sentimos que nossa vida não vale a pena ser vivida. Quantos bancários podem dizer que seu trabalho produz diferenças positivas na vida de outros?

Essa reflexão nos leva necessariamente à conclusão de que o trabalho bancário atual é destituído de sentido. É claro. Não é possível a realização de um sentido com valor e finalidade em um contexto estrutural antissocial. E a ausência de sentido é condição suficiente para a instalação do adoecimento. Por conta disso, podemos afirmar que o adoecimento generalizado da categoria bancária não é um acidente, mas efeito colateral de um projeto gerencial que ignora completamente a dignidade dos trabalhadores e consumidores do sistema financeiro. É muito estreito o balcão que separa a categoria bancária do restante da população. Em ambos os lados da mesa estão cidadãos sendo espoliados pelo mesmo sistema financeiro.

Conclusão: a estrutura política e econômica que sustenta o sistema financeiro brasileiro é antissocial, logo a gestão dos bancos, atendendo os ditames dessa função antissocial, será necessariamente antissocial. Por isso, o fundamento da gestão baseada no assédio moral não está apenas na dimensão organizacional dos bancos. Não são os colegas e gestores “perversos” os responsáveis pelo ambiente organizacional infernal dos bancos. É a dimensão econômica e política que autoriza a existência de empresas antissociais o fundamento da violência organizacional. Em um ambiente como esse (estruturalmente antissocial) todas as relações socioprofissionais serão baseadas no medo, desconfiança, concorrência, competição, deslealdade.

Bancários e bancárias são jogados cotidianamente numa arena de competição quantitativa. Não importa a qualidade do que é ofertado, mas a quantidade. Se um “produto” for péssimo para quem o adquire, isso se torna irrelevante se a meta for atingida. Se o “produto” adquirido pelo consumidor irá prejudicá-lo, isso é irrelevante se a meta for atingida. É assim que a capacidade de pensar criticamente e a faculdade de julgar vai se deteriorando dentro dos bancos. Bancários são estimulados a não pensar. Quem pensa demais corre o risco de não bater as metas. Não é de boas intenções que o inferno está cheio. O inferno está cheio de pessoas que pararam de pensar.

A função antissocial dos bancos é a doença; o adoecimento generalizado da categoria é o sintoma. Enquanto o trabalho bancário se der nesse contexto indigno e adoecedor, a saúde não será uma opção. A centralidade da pauta da saúde exige uma ação sindical concertada e que enfrente simultaneamente três frentes de batalha: 1. Estrutural (descumprimento da função social por parte dos bancos); 2. Organizacional (técnicas que estimulam a concorrência e competição entre colegas); e 3. Pessoal (sofrimento psíquico causado pelas repercussões das dinâmicas estrutural e organizacional).

Somente reconhecendo os atravessamentos econômicos e políticos que compõem o sofrimento individual é possível superarmos a chaga de apenas se “enxugar gelo” na área da saúde. É urgente passarmos para uma postura ativa de enfrentamento do adoecimento da categoria bancária. Para isso, a luta sindical bancária não deve ser meramente corporativa. Bancários e bancárias devem se ver acima de tudo como a vanguarda da sociedade brasileira no enfrentamento e resistência às mazelas coletivas provocadas por um sistema financeiro antissocial.

* Psicólogo, Advogado, Jornalista, Doutor e Mestre em Psicologia Social, Assessor Técnico do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e da Fetrafi-RS

Fonte: SEEB-RO

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